Conto: Retrato Vertical
- werner maria
- 18 de jun.
- 5 min de leitura
- É à tua volúpia que através participo como quem distingue os porquês das síncopes, dos seus perjúrios, oh, Grande Mãe: eu te entendo! Por meio deste primeiro ato real de fé de toda a minha até aqui pacata e inutilmente expedida existência me entrego à tua devoradora e complacente e infinita magnitude: que me ouçam os que me esperam: que busquem compreender a magnitude de penetrá-la pelas maravilhas do autojoio. Oh, portentora de esplêndidas revoltas, sinto tua crescente em meus poros, sinto teu toque, tua benevolência através da chuva que embaça minha visão e eriça todos, absolutamente todos os pelos do meu corpo entregue dado o frio pelo qual você se expressa essa noite.. É arrepiado que continuo a me tocar, sim, me tocar, para sempre, me tocarei para sempre: mantenho este universal e singular ritmo em tua homenagem, à tua sempre presença. Em mim, de ti celebro a vida. Água gelada que me corta os pés, aceite de mim o que à ti devolvo. E viva à nossa comunhão!, e viva a posse do uno!, e viva os sentimentos todos!, viva os caminhos abertos! Viva. Me precipito à redenção através do que ah… através do que ah… através do que ah, jorro em teu…
À ele não vale o nome nem a profecia. A maior congruência para com os pilares da eternidade dá-se por adjacências racionais quando diante de situações onde o delírio, cercado por si mesmo, escancara as falibilidades, escancara os desatinos de entregar-se: considerações finais: a pancada e seu consequente afogamento não correspondem ao infinito que saciava derramando-se nos cachos desfeitos o que sobrava na garrafa masturbando-se ao fluir da cachoeira. Apesar da busca que o encontrou ser comum à todos dentre os muitos espectros da sanidade, quem poderia imaginar ser tão grande nas mais recentes congruências desse que, em queda, pernas para cima, nu, desprende-se da garrafa enquanto compreende o fim fechando os olhos? Quem poderia imaginar que em situação tão trágica, colírio e premeditada - segundo a chuva, cenografia de sua glória -, abre os braços não como quem abraça o breve de sua situação, os abre consequência da gravidade colaborativa de seus semelhantes da ascensão e queda? Ninguém. Ninguém poderia.
Resvalando sobre as pedras lisas que levam à queda da cachoeira, bebia, entornava dilacerantes goles, babava-se tonto, abraçava-se como inteiro pela primeira vez; e marejavam-lhe respostas. Perigoso ali encontrar-se, contudo ao chegar ao topo o delírio, bruto transe, já inciara-se; o avisaram das pedras lisas, da chuva que começaria em breve, isso era certo, mas quando ali, vendo estrelas como crianças vêm as tempestades, reconheceu-se no seu reflexo sombreado e se despiu rapidamente - viera descalço. O som da correnteza, a aceitação dos pingos o embalaram à digressão final.
- Realmente a vista é linda - enquanto a trilha terminava -, magnético soprar da noite. Tanta estrela assim descarna-me dos entraves que me rodeiam os pesares, dos mais imaculadamente breves aos mais imaculadamente escancarados pela minha agora questionável veia artística. Aqui em cima minhas feições não fazem sentido - a partir deste gole foi que a embriaguez tomou as proporções de método -: vejo minha sombra dançar na correnteza e já não sou maior que solúvel indivíduo, vejo minha silhueta mover-se como deseja a correnteza apenas pela concessão que as estrelas fazem de sua luz, e sinto esvaecer minha lucidez. Como tudo isso me excita. A água valsa minhas proporções e desejo mais, mais… mais - seus pés entregues molhavam a barra da calça.
Hedônica frustração o pairava como urubus as até então precisas convicções de artista, de dedicado amante das artes plásticas. Inseguro de suas concatenações, bebia pouco dentre caretas enquanto escorado sentia os pingos que começam a lhe encontrar, a lhe elucidar com vida sua epígrafe: fora pintor desde o início da razão e, de tanta, apenas expressava-se em autorretratos - mal-dizia com desdém aqueles que da vida, ocasiões ou miragens, extraíam relevâncias dignas de expressão.
- Perdi tantos anos me dedicando às técnicas segundo meu talhe que só agora tomo noção disso. Talvez não seja tão pretérito, ou não deva ser. Sou maior que o eternamente sério do meu rosto versatilmente representado. Não lembro o que penso quando chego a resolução de pintá-lo e pintá-lo e pintá-lo, mas se trata com certeza de algo inconsciente associado à prisão domiciliar ou outdoors. Nunca reparei no fluir dos ventos como reparo agora, nem refleti sobre o porquê dos grilos, nada concluí sobre a inocência das crianças, nunca permiti-me uma, percebo agora.
Guiava-se ao topo pelo que de luz penetrava a mata densa circundando o subir da trilha. Estreita e longa, os primeiros passos foram de decadente silêncio, como se rastejasse: devaneava o porquê de tão rude resposta. Tirou os sapatos como fazia em frente a tela pois, envergonhado de tamanha grosseria, decidiu chegar ao cerne do que o havia incomodado em pergunta evidentemente simples dedicando a mesma concentração, dedicando-se a encontrar a resposta através do mesmo transe que ansiava quando pintava, visto que o sabia racional. E breve raiva o ajudou a desrosquear a tampa da garrafa.
- Não trabalho com encomendas. Nada há nos outros, como vocês desejam-se tanto, que valha a pena de retratá-los. Considero vocês, apesar de meus melhores amigos, menores que esses mosquitos nos rodeando ou sinônimo que o valha - falou ainda deitado, sentando-se, ajeitando-se confortavelmente quando percebido a fúria que deveria controlar -; não basta estar aqui, ainda preciso estar em vocês? Que me mordam e ainda assim não pintarei algo além do que me é característica. Toda essa natureza, vejam, aqui nada me inspira, é por isso que não bebo: não sou como vocês, mesmo que gostaria, acredito às vezes - calou-se por um instante enquanto o observavam com rostos cheios de pena - acho que nem mesmo a singeleza de perceber detalhes que não os meus eu possuo. Não vivo de arte. Nem poderia. Pinto autorretratos e é só. Me preservo não sei por que de todas as percepções alheias, me soam algozes ou algo assim, não sei por qual razão, é verdade. No fundo nem sei o que faço aqui. Poderia estar no meu apartamento me ocupando da mesmice que é ser sério - afundou a cabeça entre os joelhos -: não entendo sintonias, não ouço sinfonias, evito comparações… então não, não trabalho com encomendas - calou-se parecendo digerir o que havia dito. Não demonstrava se importar com o que comentavam ao seu redor.
Se levantou passado certo tempo, como que decidido:
- Aquela é a trilha que leva para a cachoeira? - apontando para incerto ponto no matagal onde acampavam - Será que posso levar o vinho?


Comentários